"As obras de Suas mãos são verdade e justiça; Imutáveis os Seus preceitos; Irrevogáveis pelos séculos eternos; Instituídos com justiça e eqüidade." - Salmo 110, 7-8

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Matrimônio e Família nos Santos Padres, nos Concílios Particulares e nas Coleções Canônicas (Parte V)



7. A essência do Matrimônio cristão

     Os Padres de certo modo já tratam da questão que surgirá vivamente na Idade Média acerca do que constitui o que um homem e uma mulher se unam em Matrimônio. Os Padres respondem sem equívoco: a essência do Matrimônio é o pacto de entrega mútua. É evidente que este tema está ainda sem elaborar, mas se expressam de forma que termos como "foedus", "pactum", "vinculum", "societas", "pactio", etc. se repetem continuamente. Aqui estão alguns textos:

     - SÃO JERÔNIMO previne a mulher contra o adultério com a menção de que tem um contrato com seu marido, contrato que assumiu com Deus: ela está, pois, obrigada a ser fiel "pelo pacto nupcial".

     - SANTO AMBRÓSIO resolve o tema com o recurso à filologia:

     "O nome de coniungium adquire seu pleno sentido quando se unem em Matrimônio. Este não se leva à cabo pela união dos corpos, mas pelo pacto conjugal."

     - SÃO BASÍLIO recorda aos maridos que devem amar suas mulheres, pois convieram em estreito vínculo de vida em comum. Tal vínculo é um jugo imposto pela benção nupcial.

     - SÃO JOÃO CRISÓSTOMO formula já um princípio que, com diversas mudanças terminológicas, se repetirá ao longo da Idade Média: não é o coito, mas a vontade de contrato que faz o Matrimônio. Pelo que este não se rompe pela separação dos esposos, pois, embora cheguem à separar-se, o pacto continua.

     - SANTO AGOSTINHO repetirá de múltiplas formas:

     "Ainda levada ao termo a separação entre os esposos, não se acaba o vínculo nupcial, pois continuam sendo cônjuges, embora estejam separados. Por isso comete adultério quem se une à qualquer um dos separados, seja com a mulher ou com o homem."

     Outro este outro texto tão gráfico:

     "O vínculo conjugal de tal modo permanece entre os esposos, que não pode romper-se nem pela separação nem pela união com outro. Pertence como sinal de crime, mais que como sinal de fidelidade."

     É claro que para os Padres, quando assinalam com tal vigor a existência do vínculo, sua firmeza não é resultado só da palavra dada, mas do compromisso cristão de entrega mútua. A saber, "a palavra dada" adquire irrevocabilidade em virtude de que o pacto fez-se ante Deus. Aqui está ao menos insinuado o fundamento da doutrina acerca da indissolubilidade do Matrimônio-Sacramento. O ensinamento dos Padres supera o conceito de pacto do direito romano: o pacto não é já a simples "affectio maritalis", mas a vontade de permanecer como esposos, que, segundo o plano inicial de Deus ratificado por Cristo, é constituir dos dois cônjuges uma só carne.

     A característica fundamental do Matrimônio cristão é a sacramentalidade; se se considera desde o ponto de vista jurídico, isso lhe dá uma perfeição, uma firmeza e uma obrigatoriedade ao pacto inicial contraído. O caráter especialíssimo do Matrimônio canônico consiste na união inseparável entre sacramento e contrato, do qual deriva como conseqüência imediata a indissolubilidade mais absoluta do vínculo.

     Os testemunhos aduzidos ratificam esta afirmação da Comissão Teológica Internacional:

     "Nas Igrejas do Ocidente se produziu o encontro entre a visão cristã do Matrimônio e o Direito Romano. Daqui surgiu uma pergunta: "Qual é o elemento constitutivo do Matrimônio desde o ponto de vista jurídico?". Esta pergunta foi resolvida de que o consentimento dos esposos foi considerado como o único elemento constitutivo. Assim foi como, até o tempo do Concílio de Trento, os Matrimônios clandestinos foram considerados válidos."

     É evidente que esta doutrina não se encontra elaborada nos escritos dos Padres. Mas é claro que a referência cristã, que no parágrafo anterior dizíamos que orientava para a idéia sacramental do Matrimônio entre os batizados, dá essa vínculo uma estabilidade vitalícia. Os Padres pensam assim e estabelecem a fundamentação doutrinal da teologia posterior.

8. A finalidade do Matrimônio

     Recolhemos tão somente o ensinamento da primeira tradição. Primeiro, porque a doutrinal é ocasional, não sistematizada, com o qual os testemunhos indicam a espontaneidade com que se viviam as exigências éticas em torno ao Matrimônio no primeiro e segundo século. Segundo, porque mais tarde os testemunhos são já numerosos e explícitos, e deles nos ocuparemos no Capítulo VIII, no que se explica a moralidade das relações conjugais entre os esposos.

     Nesta época não se menciona a teoria acerca dos "bens" nem dos "fins", que formulará claramente Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Mas de modo expresso falam e propõem finalidades diversas à união conjugal. Ao menos, duas: o Matrimônio desde de sua origem foi estabelecido por Deus para evitar a solidão do homem (e, como é lógico, também da mulher) e com o fim de "encher a terra". Essa dupla finalidade - de amor mútuo e procriador -, assinalada expressamente nos textos bíblicos, corre pelas páginas dos escritos dos Padres.

     O modelo cristão de convivência entre a esposa e o marido está expresso nos escritos de Inácio de Antioquia, com palavras que evocam os conselhos de São Paulo:

     "Recomenda às minhas irmãs que amem ao Senhor e que se contentem com seus maridos, na carne e no espírito. Igualmente, prega à meus irmãos, em nome de Jesus Cristo, que amem suas esposas como o Senhor ama a Igreja."

     A imagem se repete nos demais autores deste período. Sobre o tema, destaca em primeiro lugar Orígenes, que faz um reconto das mulheres que se sobressaem no Antigo Testamento, às que devem imitar as mulheres cristãs.

     Não obstante, ainda reconhecida a igualdade entre o homem e a mulher como faz São Paulo, contudo se destaca a submissão da esposa ao marido. São Clemente propõe este ensinamento:

     "Mandas às vossas mulheres que cumpram todos seus deveres em consciência impecável, reverente e pura, amado do modo devido seus maridos, e as ensinas a trabalhar religiosamente, fiéis à regra da submissão em tudo o que se relacione à sua casa, guardando toda temperança."

     Outro tema muito presente nos escritos patrísticos é a condenação do adultério. O dever de fidelidade conjugal pode-se romper tanto por parte do homem como da mulher. Neste sentido foi assimilada a doutrina neo-testamentária. Assim, por exemplo, Aristides, no reconto dos preceitos que guardam os cristãos, enumera a fidelidade: "se abstêm de toda união ilegítima e de toda impureza". São Justino considera o adultério como uma "iniqüidade". Atenágoras, com as palavras de Jesus, recorda que também pode haver "complacência de adultério" desejando uma mulher "no coração". O Discurso à Diogneto expressa com frase muito gráfica que contrasta com a corrupção da época: "os cristãos colocam à mesa (os bens) em comum, mas não os leitos" (não compartilham a mesma mulher).

     Paralelamente com a condenação do adultério, os Padres expõem com elogio o valor da pureza e da virgindade. O tema sai do nosso tema, mas é preciso destacar que, frente à corrupção do mundo pagão, a primeira literatura cristã descobre o valor da sexualidade humana, orienta acerca de seu reto uso, prescreve a virtude da pureza e exalta a virgindade. Não obstante, os Padres desta primeira época em nenhum momento desprezam o Matrimônio. Clemente Alexandrino o defende contra os erros de seu tempo. E, quando essa tese seja defendida pelos gnósticos, Santo Irineu contestará aos hereges em sua defesa com a afirmação de que o Matrimônio é obra de Deus.

     Assim mesmo abundam os testemunhos acerca dos deveres dos pais para com os filhos. São freqüentes as máximas de estilos sapienciais. E caberia afirmar, se formulamos em termos de pedagogia atual, que o princípio básico se fixa em educá-los no sentido religioso da vida e no respeito à sua liberdade. Literalmente se expressa assim a Didaqué:

     "Não levantarás a mão de teu filho nem de tua filha, mas que desde a juventude lhes ensinará o temor de Deus."

     Clemente Romano esta síntese da educação dos filhos e das virtudes que praticarão os pais:

     "Reverenciemos o Senhor Jesus, cujo sangue foi derramado por nós; respeitemos aos que nos dirigem; honremos os anciãos; eduquemos aos jovens no temor de Deus e enderecemos ao bem nossas mulheres... Participem nossos filhos da educação em Cristo. Aprendam quanto seja a força da humildade perto de Deus; quanto pode com Ele o amor casto; quão belo e grande é seu temor e como salva todos os que caminham santamente Nele com mente pura."

     Por sua parte, os filhos devem ser carinhosos, terão de reverenciar e obedecer seus pais: "entre nós, afirma Atenágoras, tributamos honra de pais e mães". E de modo expresso recordam outros Padres, tais como Aristides e Teófilo Antioqueno.

     A finalidade procriadora está muito sublinhada. São Justino, frente ao judeu Trifão, estabelece este princípio:

     "Nós nos casamos desde o princípio somente pelo fim da geração dos filhos, ou, ao renunciar ao Matrimônio, permanecermos só absolutamente."

     O mesmo pensamente, se bem em um contexto ainda mais radical de proibição de segundas núpcias, se expressa Atenágoras:

     "Cada um de nós tem por mulher a que tomou conforme às leis que por nós foram estabelecidas, e esta com vistas à procriação dos filhos."

     Clemente Alexandrino o expõe em forma de princípio: "O fim do Matrimônio é a procriação". Ou esta outra fórmula à modo de tese: "O Matrimônio é pelo desejo de procriar" (gámos e paidopoías óresis). Segundo Broudehoux, o ALexandrino, ao propor como fim único do Matrimônio a procriação, situa-se em dependência de duas correntes: a pagã, representada especialmente pelos estóicos e de seus predecessores, os apologistas. Por isso será preciso esperar Santo Agostinho para encontrar o equilíbrio entre os diversos bens do Matrimônio.

     Daqui a forte condenação do aborto e do infanticídio. A Didaqué sentencia: "Não matarás teu filho no seio da mãe, nem lhe tirarás a vida ao recém nascido". À quem pratica o aborto os denomina "matadores de seu filho".

     A Carta do Pseudo-Barnabé contêm o mesmo preceito: "Não matarás teu filho no seio da mãe nem, uma vez nascido, lhe tirarás a vida" E condena aos "assassinos de seus filhos pelo aborto, pois são destruidores da obra de Deus".

     São Justino, contra o que era usual em seu tempo, diz que "expôr (abandonar) os filhos recém nascidos é obra de malvados". A Carta à Diogneto contrapõe a conduta dos cristãos e dos pagãos. "Os cristãos se casam como todos, geram filhos, mas não expõem aos que nascem".

     Atenágora condena assim estes dois pecados da época: aborto e infanticídio:

     "Nós afirmamos que as que intentam o aborto cometem um homicídio e terão de dar conta à Deus dele...Porque não se pode pensar que o que a mulher leva no ventre é um ser vivente e objeto, portanto, da providência de Deus, e matar logo ao que já avançou na vida; não expôr o nascido, por crer que expôr os filhos equivale à matá-los, e tirar a vida ao que foi já criado. Não, nós somos em tudo e sempre iguais e acordes com nós mesmos, pois servimos à razão."

     Outros ensinamentos dos Padres em relação com a vida de família e o valor da sexualidade se tratam nos Capítulos respectivos.

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